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24 de julho de 2013

Quadro clínico da vovó

por carolina fellet

Minha avó se transformou em uma espécie de carne do Mc Donald´s. Apesar de o orgânico insistir na vida dela, o discernimento humano já não lhe pertence.
Apelidada por alguns de Alzheimer e por outros de loucura, a doença da vovó serve de amortecedor a problemazinhos cotidianos que surgem para consumir minhas reações.
Somos incomunicáveis - eu e vovó. O código humano já não nos une. Os sons que o corpo dela produz se parecem com os dialetos dos países árabes. E a agressividade que às vezes se apossa do corpo dela me remete a selvas aterrorizantes.
Que Deus a tenha.

12 de julho de 2013

Democracia

Um dia, o corpo democrático(?) do boi passa a ser hierarquizado:
o filé mignon vai para a mesa do grã-fino; a chã, do remediado e o músculo, para a Sopa dos Pobres. 

7 de julho de 2013

Constatação

O voo incorpora-se no pássaro.
O som rebenta na audição.
Faculdades materializam dentistas
e otorrinolaringologistas.

2 de julho de 2013

1403 fundos


Três posturas ancestrais quase universalizam os homens: deitado, assentado e de pé. Sula, por um instante, põe à prova a própria memória articular. Com as mãos, apoia-se no chão e com os cotovelos apontados para as laterais do corpo, sustenta as pernas penduradas. 
A estampa configurada remete o espectador a uma manobra da natureza; talvez à de uma flor antes de incorporar-se integralmente flor. 
Quem observa a moça é o voyeur do prédio adjacente, cuja fachada faz fronteira com os fundos do dela. O rapaz dispõe de binóculo e de uma avidez por espiar. Espia todos os dias os vizinhos englobados pelo seu campo visual sintético. 
Dessa vez, sem entender a paternidade do acometimento, ficou paralisado pela situação. A posição de Sula o levara à gênese do mundo; a vislumbrar a eternidade da vida e  seu incessante processo de composição e decomposição das coisas. 
Ligou-se à moça, mesmo sem lhe saber as feições e o comportamento. E as outras janelas, resguardando os seus respectivos acidentes domésticos, a partir dali foram alienadas por ele. 
*
No vocabulário da ioga, a posição executada pela garota é designada genericamente por asana. Para os não-iogues, contudo, ela é classificada como um feito ultra-humano. A estes, quem é capaz de realizá-la acessa também o mistério do voo e o desconhecimento que todas as crias do Tempo carregam consigo. 
Os cientistas desvelaram parte desse desconhecimento e o batizaram de Bóson de Higgs ou Partícula de Deus. Será mesmo que a Ciência está mais perto do oculto da vida? Será que o Tempo poderá ser compreendido pelo pixel? 
Que importa a Ciência perante um coração sequestrado pelo amor? Amor instituído involuntariamente por um esboço feminino visto através do binóculo. 
Os representantes mais rudimentares de toda a fauna conseguem perceber a presença de outros animais - inclusive a do homem - quando estes se lhes aproximam. E o humano, estranhamente, de quando em vez, é frígido diante do seu par, não sabendo as aflições, as expectativas e as desilusões alheias. De tempos em tempos, a manufatura humana - uma máquina de raio X, por exemplo, - ultrapassa seu criador e acusa angústias materializadas, sofrimentos implodidos dentro de um corpo. 
Sob uma angústia irreconhecível, João Luiz questiona-se: como serei notado por essa mulher que me trouxe a perspectiva de que somos todos ventríloquos da vida?
Subitamente, interrompendo a divagação do espião, um vendedor de biju surge na rua que separa os prédios do casal - ainda desunido. Com seu chocalho farto de decibéis, o ambulante anuncia o produto. João Luiz sente-se colado a Sula. O som os alinhara. 
*
Assim que amanhece, um helicóptero da Receita Federal decola no Aeroporto da Serrinha para executar a Operação Grifo. Quatro agentes acompanhados de uma câmera supertecnológica irão sobrevoar um condomínio de granjas próximo, a fim de avaliar se os imóveis ali construídos e em construção são compatíveis com o patrimônio declarado no imposto de renda dos proprietários. 
Duas piscinas, três quadras, 800 metros quadrados de área construída. Os músculos oculares da equipe se sobrecarregam com as dimensões e os detalhes a serem analisados. Sorte que a filmadora cumpre seu expediente com demasiada precisão e arquiva toda a construção em suas entranhas artificiais.  
Vencido o observatório, os agentes identificam primariamente o dono do mausoléu: JOÃO LUIZ PAMPLONA, 29 anos. 
*
Mais um arranha-céu está sendo construído na rua que separa o iminente casal e, enquanto o Mundo, em silêncio, dá à luz todos os dias matérias, texturas, cores e formas, erguer um mísero edifício implica muito barulho.
A paisagem sonora da vizinhança foi alterada desde as primeiras estaturas dessa construção. E Sula até prescindiu do despertador, pois toda manhã, pontualmente, um muque de peão fricciona uma lixadeira elétrica sobre o 14º pavimento da obra. 
Entoada a fricção, ela levanta-se quase como um autômato, abre a cortina e a janela e inteira-se aos poucos da hora da vida. Mune-se da parafernália exigida pelo civilizado: relógio, indumentária, fragrância, cabelo penteado, dente escovado e olhar sempre avante e segue para a redação. 
Nesse dia, um adendo à rotina: assim que abre a cortina, percebe um movimento incomum vindo da janela do prédio da frente. O pensamento incipiente: estou sob a ressaca do sono. Ela, então, esfrega os olhos e lê um coração desenhado sobre um papel branco imenso, mas reduzido pela distância. 
Amontoa a mensagem nas ações subsequentes e dá andamento aos compromissos do dia, embora ansiosa pelo seu desfecho. A expectativa alonga as horas. Sula embaralha-se nas ações mais triviais, como se intempestivamente desaprendesse a andar. Todavia, após o percurso de tropeços, eis o momento da volta para casa. 
Já dentro do apartamento, sauda brevemente a mãe e desloca-se feito onça prestes a capturar a presa para o quarto, que é fundos. Antes de abrir a janela do cômodo, tenta antever o movimento do prédio onde mora João. Mas os vidros do quarto dela são canelados e a impedem da espionagem. 
Agora livre do efeito inebriante do sono, decide abrir a janela sem mais suspense. E antes que qualquer outro movimento lhe cative a atenção, mais um cartaz rouba-lhe as vistas. Sobre um extenso papel pardo lê-se o símbolo do Facebook sucedido por João Pamplona. 
Ela não titubeia. Busca o nome na rede social, encontra-o, lhe propõe amizade e rapidamente, sem a cerimônia do mundo físico, entra na habitação cibernética de João. Deslumbra-se com a paisagem humana avistada. Se condisser com a imagem de perfil do Face, ele estará para os homens como o Arpoador está para a arquitetura natural. 
Enquanto entre vira-latas a comunicação é automaticamente legitimada no reconhecimento da espécie que os equipara, entre os humanos, há de se compatibilizar o tempo do emissor com o do receptor; o idioma e as subjetividades. 
João precipita-se e quase entope a interlocutora com informação, e após 24 mil caracteres, consegue ficar a dez centímetros de Sula. A vontade dos dois é de beijar-se. Demoradamente. Pois ambos já instituíram, no canteiro dos respectivos âmagos, uma admiração e uma atração mútuas. Agora, querem colocar no prumo os cabos de eletricidade soltos em seus corpos. Querem desovar seus instintos um no outro. 
Ainda com farelos de constrangimento, João aproxima-se mais de Sula, percorrendo os dez centímetros mais extensos de sua vida. Até que lhe alcança a boca. As duas bocas agora se chupam devagar e involuntariamente impõem goela abaixo a presença ligeira da libido - esta que fica sempre a postos de seus solicitantes.  
Depois de 120 mil caracteres, João estava dentro de Sula exercendo a prática ancestral e universal do sexo, e antes que o instinto se materializasse no gozo, o casal percebeu, com a pouca vigília imunizada contra a libido, a sintonia perfeita os envolvendo, feito os hemisférios reverenciando os dias e as noites. 
Dois meses se passaram
Como era fim de semana, o muque do peão responsável pela variação de estatura do novo arranha-céu estava bem afastado dali e das consciências que o reconheciam apenas peão.
Sula, sem o soar da lixadeira elétrica, fora acordada por outra labareda da vida: o aroma do café preparado por sua mãe Nair. 
Já na cozinha cumprimentou-a, ligou a TV e os ouvidos, imediatamente, foram infringidos pela notícia: 
João Luiz Pamplona, 29 anos, foi encontrado morto com um tiro na nuca e outro no tórax numa estrada vicinal no bairro Alpes, região sudeste da cidade. Peritos que compareceram ao local relataram que o jovem se ajoelhou antes de morrer, aparentemente para implorar pela vida. O crime teria sido encomendado por um homem que lhe devia 12 mil reais. O delegado do 4º Distrito Policial, Arzenclever Toledo, informou que o jovem era proprietário de um imóvel avaliado em 3 milhões e trabalhava com agiotagem. 
A desova de adrenalina dentro do próprio corpo marcaria para sempre a vida de Sula. Se dali a cinquenta anos, alguma doença fosse diagnosticada nela, indubitavelmente, essa descarga seria apontada como uma de suas fontes primárias. 
Um mês depois
João Luiz estava em processo de decomposição e seus escombros, empenhados . O filho em formação no ventre de Sula era o prenúncio da eternidade do jovem na Terra; era a vasta memória do tempo que passa adiante o passado com seus códigos fatais.
Carolina Fellet