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25 de fevereiro de 2008

Civilização das formigas


Lancharam.
Oficialmente, era a última refeição do dia: mesa posta, chaleira borbulhando, pão esfumaçando, pão-de-ló inteiro, guardanapo. Talheres contados.
No entanto, conforme o grau de civilidade, há sempre a gordinha que se excede, espera a casa se aquietar e, a passos de gato, penetra a geladeira. Empanturra-se. Convoca a equipe do Grande Metabolismo para lhe atuar. E o Mundo sempre se farta da esperança de que a qualquer momento irá descansar.
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Sobre a pia, um amontoado de vasilhas – ressaca da última refeição.
Pares de pires, pratos, talheres, pocinhas de água espalhadas pelo granito. Uma xícara com destroços de café com açúcar. De repente, uma fileira de formigas recém-civilizadas que encontram, subitamente, um hábitat. Elas são de tom acaju. E exploram a superfície encontrada. Deleitam-se. Todavia, temem os adventos da Evolução. Elas estão atônitas perante um movimento humano que lhes está próximo. A mulher gorda – com a docilidade que rebaixa e até perdoa a feiúra – apaga as luzes da cozinha e deixa as formigas viverem o êxtase da descoberta.

22 de fevereiro de 2008


O Cosmo ficou imensamente pequeno.
A ponto de me chegar às mãos sob a forma de um palm top.
Navego. Sem as náuseas das grandes embarcações.
Conheço o Mundo.
O Velho.
O Novo.
Em nesgas de segundos.
Volto sem suar.
Deito.
Durmo.

Esqueço tudo.
O Mundo banalizou.
Prostituição abundante, democrática.
E todo mundo hibernado em consultórios que tratam a cabeça.
A misantropia,

A solidão.

19 de fevereiro de 2008

Automóvel


O que mais a enerva são os morros. E o relevo da cidade é justamente montanhoso. Dirigir é estado de espírito. Não é a defensiva, não são as aulas de sinais, não é o contato inexpressivo com um psicólogo medíocre que examina a psicologia alheia através de desenhozinhos imbecis.
A grande metáfora-contemporânea à Vida é o automóvel. Neste, é preciso ser mutante conforme a delinqüência alheia, conforme as palavras de baixo calão, conforme um ônibus fazendo-lhe um ângulo reto.
Dirige, portanto vive conscientemente, com as pernas e a psique em cada momento de cada vez.

16 de fevereiro de 2008

Memória Seletiva


O professor pediu aos alunos que lessem, decodificassem e lhe entregassem – sob forma de resenha – o conteúdo de um livro sobre fotografias de um pesquisador de Harvard.
Danuza tem uma inteligência emocional e egocêntrica. Portanto, qualquer abordagem que permeie a sociedade dos sentimentos, dos conflitos psicológicos e psicodélicos lhe desperta interesse. Outras inclinações jornalísticas, literárias, no entanto, não lhe são muito bem vindas.
São quarenta e seis páginas, em que uma linguagem formal, aliada a um tema típico de quem se interessa pelas grandes causas do Universo, se organiza como incipientes civilizações rígidas e tensas diante de um novo conceito de se viver. Repelente textual. Não há o que consumir.
Os pares de olhos, quando chegam a qualquer lugar, investigam – aproveitando as habilidades laterais e longitudinais do globo ocular – as belezas, as misérias, as volúpias, as censuras, os pudores e experimentam aquilo de que gostaram. Rejeitam o repugnante.
O cérebro – furtivamente – evacua toda a sabedoria didática, sem interesses intrínsecos. Joga-a ao Nada. Coitada da boca aberta de quem estiver à mercê. Sabedorias descartáveis estão às soltas.

14 de fevereiro de 2008

Lanche





São treze cômodos generosos a casa.
Nice ficou órfã de pai e de mãe aos vinte anos, e lhes herdara a fazenda onde ainda mora com quatro empregados. Desenvolveu, quase que por insistência do Destino, uma afeição às flores, à aprendizagem de idiomas, ao exercício do Budismo e à gastronomia. Se não fosse isso, a vida estaria à mercê das sabotagens do tempo, que são o próprio tempo. O que é o Tempo, senão, o crime perfeito das rugas, das podridões, da volúpia, da impotência?
Nice deu à luz uma habilidade típica dos poetas ou de quem exercita alguma arte: ela pensa a sombra de tudo que possui uma existência evidente. Há umas semanas, ela arriscou preparar uma iguaria que aprendera em um livro requintado de receitas, pôs-se à bancada da cozinha – sozinha – e comia.
Enquanto, no diálogo, o pensamento do interlocutor e o do emissor desenvolvem um acordo mútuo, a solidão se perde no caos das próprias vozes.
O pacote de biscoito está aberto. Dentro de pouco tempo, as bolachas estarão totalmente murchas. Daí,surgirão os físicos para explicar por que acontece isso. Batizarão os fenômenos metafísicos de substância X, que é formada a partir de substância Y e ficarão sisudos por burocratizar o inexorável.
Os fantasmas se estendem ao saco de biscoito, às dúvidas de Nice e à incapacidade de dizer de quem ousa escrever qualquer bobagem, desenhar qualquer bobagem.

12 de fevereiro de 2008

Se ele entende a maldade como maldade


Pedro Paulo estava defecando no banheiro.
Seus dois irmãos – Verônica e Leonardo – conversam na sala de televisão.
Sua mãe, ainda que não se lhe saiba o destino neste exato momento, compreende. O kit de sobrevivência de dona Maria Carmem, em vez de Oxigênio, valores recomendáveis de pressão e de temperatura, é o compreender intransitivo. Ela compreende. Ainda que seja bandido, banido, desvalido, esteta. Não importa sua causa. Ela compreende.
Quanto conforto, não?
Pedro Paulo foi traído por sua mulher. Faz dois anos que eles se casaram e ele a ama muito. O perdão para ele é natural. Não demanda, sequer, muitos esforços. A maior dificuldade é resistir às verdades dos seus congêneres.
Hierarquia é papo furado.
Pedir conselho para a mesma espécie, principalmente se ela é contemporânea ao que hesita, não tem muita significância. Estamos todos sob as mesmas experiências, sob a mesma receita divina, afinal.
Pedro Paulo aproveita dos momentos de claustro para dar chance, meio involuntariamente, às catarses. A um homem contemporizado à velocidade do século XXI, quinze minutos de banho, dez minutos de evacuação impelem à reflexão.
Decidiu. Irá perdoar Ana Flávia, a esposa.
Agora produz, em sua alquimia intrínseca, os antídotos à censura – velada ou evidente – que emana das pessoas que se entrosam com o extrínseco, que se identificam com automóveis, com o talhe de Armani. E fazem fofoca demasiadamente.
Pedro Paulo não está muito aquém do atraso dos que envenenam as circunstâncias. As pessoas. Porque sua linfa muda de química perante a maldade do outro. A freqüência coincide. Se ele interpreta a maldade como maldade, é porque a bondade anda esquálida.

11 de fevereiro de 2008

Ramiro Milhões



Ramiro talvez seja o indivíduo mais rico da Zona da Mata mineira. Nos registros econômicos da família, consta que seu avô – Marco Paulo – fabricava, através de uma receitinha caseira – notas de altos valores da moeda da época.
Com o dinheiro – transformista fez impérios, de cujos gozos desfrutam toda a descendência viva. Ramiro, o herdeiro mais jovem de Marco Paulo, aquele radicado em Minas há quinze anos, é um cara cosmopolita. Ser cosmopolita em cidadezinha provinciana repercute em reação. Como tudo. Conforme a existência precede a essência. Os carros lustrados, pintados à modernidade são mordomos do poder. O poder se enfurna em áreas inadequadas. Quando se o percebe, ele alfabetiza a variedade do âmago da espécie humana. A conduta dos sentimentos baseia-se – precipitadamente – no carro, na cútis, no músculo, na fragrância importada, no endereço, no círculo social. E, de repente, engasga-se no próprio equívoco. E sucumbe à primeira oportunidade de se entorpecer e de se alienar.

9 de fevereiro de 2008

Sujeito Oculto


Mayara namorou Marcos por quase três anos. Agora – sábado, dez e meia da noite – ela está sem banho, com os cabelos oleosos, sobre o colchão da cama do quarto de princesa que lhe foi feito sob medida e gosto. Ela chora muito. Desde pequena. Vai à escola e chora. Almoça e se atenta ao noticiário e chora. Perscruta a vida dos próximos e dos distantes e chora.
Curiosa que é, quis, cedo, descobrir por que aquela sensibilidade toda a escolhera. Teorias espíritas. Horóscopos. Destino. Acaso. Pensou possibilidades. Desbotou-se. Provavelmente, o ter sido materializada àquela época justifica a cruz de uma sensibilidade enorme e perene.
Aos dezessete anos – numa era Pós – Moderna, em que, quanto antes se antecipar nos conhecimentos empíricos melhor – ela experimentou o beijo. Apresentou-lhe inúmeras objeções, mas como os costumes se travestem, por vezes, de natureza, ela insistiu beijar. Beijou poucos. Mas a mil por hora. Alguns foram descartáveis como a duração de um copo plástico em festinha de criança que começa às 18h30 e termina às 21h30. Outros a acompanharam por algumas semanas, por algumas sessões informais de conhecimento mútuo da psicologia prática.
Marcos a decepcionou. Divertiu-a. Excitou-a. Trouxe-lhe presentinhos impregnados de metáforas e declarações. Transformou cada canto por onde passou com ela em vida. Como o Deus materializando o Nada em qualquer coisa. Marcos foi magia. No entanto, metástase de descaso.
Fatal.
Hedonismo é nocivo. As seqüelas vêm à tona.
Marcos não mais pertence às citações, às perguntas casuais que chegam a Mayara, às fotografias acopladas a quadros de ímã. Todavia, está subliminar em tudo que a moça diz. E em tudo que ela faz. Na inércia. Na dinâmica.
As memórias são sempre contemporâneas. Nunca se tornam obsoletas.

7 de fevereiro de 2008

Juiz de Fora, 07 de fevereiro de 2008


O poeta-mor afirmou que para escrever dor é preciso fingi-la, desde que já se a tenha sentido antes. No entanto, esperar que a dor se torne póstuma para expressá-la é como se a colocássemos em uma conserva e a degustássemos diariamente. Intoxicação por dor. Morte por dor.

6 de fevereiro de 2008

Imperativo


Faze. Respira. Anda. Come. Dorme.
Não te excedas.
Evita doces, álcool, tabaco.
Gosta de uma música bem suave.
Ama a fração serena do corpo que regozijas,
Abstém das interferências com o amante.
Goza pelos canais eróticos da manifestação da matéria.
Goza pelos poros.
Pensa as memórias das volúpias e das palavras que te salvam.
Esquece a insipidez e a praticidade fria que transportam tantos humanos.
Engravida de vida todos os dias.
Hiberna com o Tempo e lhe agradece pelo teu milagre diário,
Pela habilidade de transformar o ar em kit de sobrevivência.
Depois disso,
Morre tranqüilo.