Total de visualizações de página

21 de fevereiro de 2007

Tia Hilda

Caminhão de mudanças.
Aproveitou da ojeriza que tem a carnaval para fazer a mudança a que tanto aspirava. Sairia de um apartamento de três quartos para um de um quarto. Motivo: muito espaço a uma pessoa sozinha, muitos cômodos a limpar, mausoléu, enfim.
Pagou um frete apenas. A fim de economizar, amontoou tudo, de forma que uma viagem desse conta dos móveis, dos utensílios, das roupas, dos sapatos. Era muita coisa: roupas herdadas de bebês de dois anos de idade, sapatinhos com numeração de criança, frascos vazios de perfumes franceses, toquinhos de batom, mofo. Em tudo havia mofo, muito mofo. Uma prova de que a vida, de que Deus estava ali presente. Deus nunca se abstém das vidas; nem das vidas inanimadas.
Tirou do tino o motorista do caminhão. Ele se arrependeu de, à época carnavalesca, aceitar a proposta de fazer uma mudança. Não uma mudança qualquer, mas a uma senhorinha neurótica. Cuidado com as curvas, moço, tem um monte de taça que eu trouxe da França. Preste atenção, abaixe o volume desse rádio, o senhor está em horário de serviço. Aiiiiiiiiiiiiiiiii! Puta que o pariu. Se eu soubesse que seria assim, teria levado tudo na mão. Nossa senhora, que má vontade!
Depois de observar tudo aquilo, quieta, esteticamente absorta, concluí que, com aquela quantidade de parafernálias, Tia Hilda poderia estrear uma nova civilização. A civilização incipiente e ultra-moderna do século XXI.
Foram seis dias de arrumação, limpeza, insônia. Desligou o telefone. Fechou as janelas. Simulou uma perda de identidade. Como em uma ficção fajuta, enterrou-se por uns dias e alienou-se do Mundo. Há trinta horas que ela dorme... E dorme... E dorme.

20 de fevereiro de 2007

Pés

Olhando, parece um ser bruto. Os pés, conforme nosso comando, podem tatear suavemente a superfície, extraindo dela a textura, a temperatura e, conseqüentemente, uma afinidade ou uma ojeriza a ela. A ginástica do pé fica sob nossa vontade, embora a composição que o forma esteja à mercê da Vida. Como os grandes rochedos que ilustram a interseção entre o fundo dos mares com a parte rasa, com a praia. O pé, levitando a menos ortodoxa conotação, é uma rocha que corresponde à gastura a que o tempo o submeteu.
Os dedos dos nordestinos de pouco tempo e, no entanto, antigos de trabalho, ficam estáticos. Os sóis, as chuvas, o incessante movimento, os calos os mumificaram. A vocação a contorcionistas cessou-lhes.
Eles resistiram a mil guerras, feridas abertas. Não precisam de histórias, não precisam de um ouvinte. O sentido instantâneo da visão dá o desfecho à trajetória do instrumento andante.

19 de fevereiro de 2007

Cadáver à moda da Rede Globo

Enterraram o vovô com o blazer irretocável. Azul marinho, beirando o preto. Camisa branca de gola engomada e uma gravata discreta, de seda. A fisionomia já estava comprometida pelos oitenta e dois anos e suas mazelas inevitáveis. Ah! Vovô, quanta saudade.
Outro dia, ao mexer na caixa onde guardo velhas fotografias, assaltou-me a imagem dos cabritinhos que, amiúde, você comprava para nos agradar. E enchia aquele sítio lindo que você fez também para nos agradar. O que me comoveu e me encheu de um prazer nostálgico foi a mamadeira que você comprava a cada um dos cabritinhos. Dava-lhes leite pela mamadeira. Que alma imensurável. Daí, já envolvida com os raios de nobreza que lhe emanavam, fiquei frente a frente à outra imagem sua: você estava tirando cochilo, debaixo de um banco de madeira, sobre uns jornais. Que homem. Que Homem.
Tudo que você fez em Terra ganhou uma repercussão toda peculiar. A Natureza capricha em algumas de suas empreitadas vitais. Há tempos não o encontro em outras gentes. Quanta carência.
No Rio, uma vez, todos ávidos pela festividade da virada de ano, ao abrir o armário da vovó, hipnotizei-me com a cena ingênua que o senhor montou: seu martelo – sujo de tintas e do próprio tempo – fora colocado sobre uma roupa de linho branco da vovó. Chamei todos que estavam na casa da praia e rimos da sua pureza. A pureza é tão exígua que, quando se a vê, sente-se algo incomum. Você continua sendo incomum.
Até no cume da vida, até diante da morte, houve uma circunstância memorável ligada a você. Enterraram-no com o tronco requintado e, no entanto, sem as calças. Cobriram-no de flores. Talvez gastaram a Floresta Amazônica inteira, mas não deixaram suas calças ao deus dará. Quem o preparou ao final estético, encantou-se pela calça... esta deve estar vivendo a marcha de um par de pernas anônimas.
Garanto que, conforme seu talento à generosidade, você está muito feliz a perscrutar essas perninhas que, clandestinamente, herdaram suas calças.

Restos e sobras

Deixaram-me o Mundo. Tantos céus a serem, outorgadamente, contemplados; ares a serem inalados; águas a serem bebidas; frutas a serem comidas. Minhas vidas contemporâneas vão ao cemitério dos meus sentidos em ação. O alface por pouco sobrevive em meu tempo. Já, já vira cadáver. O meu apetite é um cemitério superpovoado.
O sabiá que se dissimula no jardim da casa de sr. Itamar, meu vizinho, é ração a meus olhos, a meus ouvidos. O mundo estende-se a mim... Todas as habilidades das mais variadas formas vivas são uma exuberante vitrine a mim.
A chuva, que já é destra a ser chuva, escorre-me integralmente. O nascimento hábil das águas incita minhas curiosidades; minhas ávidas pretensões de saber qual é a verdade.
No momento em que a casca da laranja foi jogada ao solo, no momento em que o Tempo iniciou-se no processo de decomposição da vida, no momento em que penso e, conseqüentemente, sou pensada pelo tino de que não sou rei, o aerossol de espantos radica-se em mim. No meu mundo mais interior.
Dispuseram-se de um acervo virtual impalpável para elaborar as imagens que me surgiram nessa noite, enquanto dormia. Quanto será ainda me resta para consumir??

17 de fevereiro de 2007

Argh!

Não vou vulgarizar. Usar do efeito das palavras de baixo calão. Mas, a minha maior pretensão é me rebelar contra os indivíduos que fervem minha saliva de misantropia.

16 de fevereiro de 2007

Carnaval 2007

Nunca concebi aqueles carnavais de que tanto falavam meus avós e até mesmo meus pais. Será que os tempos eram tão diferentes destas temporadas entediantes? As lindas marchinhas salvavam uma existência pelo menos até o final do respectivo ano? O lança perfume, que se acumulava na composição dos ares, aliviava os indivíduos da Melancolia? Os Coquetéis tinham efeito prolongado?
Como os ateus tão presunçosos quanto os fanáticos, descreio nos milagres dos antigos carnavais. Acho que tudo isso é oriundo da grande farsa do “Era melhor porque era antigamente”. Antigamente traz uma noção de cultura erudita, elaboração minuciosa das civilizações greco-romanas. O cume da perfeição, ou da proximidade a ela, pertence ao agorinha, àquele serzinho que acabou de berrar ao Mundo. Bandeira ascendida à vida.
Aproveito, com costume, como quem faz um jejum anual, a mudez do carnaval para atinar à minha posição na Existência. Reparo como foram as manifestações sociais, culturais, sentimentais. Pego meus sentidos e os trato como Playmobil. Uma lascívia abre uma fresta a uma frustração. Daí, nasce um enredo. Meu brinquedo é o desabafo.
Comemorar os bustos fartos, explícitos e lustrados com óleos e postos na feira. Sem preço. Quase gratuitos como os frutos. Embora sem a castidade da ignorância de ser um fruto. Comemorar os bumbuns, incrementados com pecinhas pequenas de pano. Comemorar a falta de sobriedade. Comemorar o xixi público de um pênis anônimo. Comemorar a pornô chanchada livre de tributos. Comemorar a volúpia do guarda que se pune em uma objeção à própria Natureza. Não se sente digno ao se excitar perante as pernas de uma garotinha muito jovem. Mas, se salva rapidamente ao vê-la desmontada de libidos, nos braços de um rapaz bem adulto.
Aproveito meu Carnaval. Minha vocação a Themis perdoa a juventude que se vulgariza. Minha Themis entende o excesso dos outros. Mas, não se enfurna na morbidez. Porque valoriza, com primazia, a fragrância que existe em cada corpo. O que há no lado de cá.
Neste ano, a novidade da fantasia é a casa enorme, esse mausoléu entregue a mim. Simplesmente a mim. Acordarei sem as dívidas do bom dia. Descerei a escadaria e preparei o recheio a meu pão que, bem cedo, o padeiro deixará na grade.
Ai, a solidão me enche de frenesi. O exercício esporádico da Misantropia é salutar.

14 de fevereiro de 2007

Motivos para não se gostar de telefone

Simone tem ojeriza a diálogos – à mil e uma noites – à linha do telefone. Radicalmente, diz: telefone é para caso de urgência. Caso eu necessite mudar o horário dos clientes, caso eu atrase a visita a Mirian... Nada de chamegos guturais.
Estava umedecido o Tempo. O céu dissimulado pelo degrade oriundo do Cinza. Era domingo. Tudo incitava depressão. Ainda que sofrida, desencadeadora de produções artísticas mirabolantes. Simone é artista plástica. Como de praxe, escolheu um sobrenome que reluzisse; escolheu um codinome: Simone Belvederli. Conforme as convenções se enraízam em nossa psique, aquela invenção toda se radicou na linfa da mulher. Absteve-se ingenuamente da Simone-mais-um-artesanato-de-deus e incorporou a extensão da artista. Considerava-se e, de fato, era artista. Uma interseção entre Deus e o Mundo.
Deu-se ao luxo e ao despudor de assumir detestar telefonemas longos, infindáveis. Certa vez lhe ligaram e os assuntos voavam a todos os continentes. De repente, após o giro cósmico, cessou-se o ideal. Silêncio nesse lado, mudez naquele lado. Que constrangimento. A mulher fez de tudo para que a pessoa que estava na linha desligasse o telefone... Sutilezas vãs. Haja paciência! Silêncio à frente de uma existência robótica que tem, como status – mor, a transmissão de sons. Não dá.
Outra vez, o zunido repelente do telefone soou. Ela estava à pia, escovando os dentes após uma das poucas refeições que fazia no ínterim de um dia. Enxaguou-se com desleixo e correu em direção ao aparelho que emanava o ruído. Atendeu. Era uma amiga de infância, da qual nem se recordava nitidamente, já que conviviam porque assim determinou a Eternidade. Joana – a amiga de outrora – forçou uma saudade, forçou uma espontaneidade. Por um momento, fixou-se em um assunto com projeções incrementadas e o repetiu... Repetiu... Repetiu. Existe sempre gente que se identifica com o refrão. E sequer se interessa pela trajetória de um poema.

12 de fevereiro de 2007

Corte de Cabelo

Vanice comprou uma vastidão de revistas no sebo. Todas com as capas referentes a cortes de cabelo. Corte de cabelo. Vale a pena, principalmente quando os dias ficam comprometidos meramente com a hóstia previsível do trabalho, da escola, da ioga, da ginástica. Mudança. Já.
Enquanto os esquemas não variam, enquanto a Economia não oscila, enquanto meu emprego não melhora, enquanto me fatigo com as mesmas ideologias, com a pilha de livros e com a MPB, opto por alterar a jardinagem.
Que novidade. Sou uma intrusa nos textos que não me pertencem... Que fazem parte desse mundo lúdico da minha consciência e do meu devaneio.
A moça vasculhou todas as revistas, analisou cabelo por cabelo... Deu uma grifada naqueles que condiziam com suas pretensões e que combinavam com a forma do próprio rosto. Mostrou à Dorarite, sua mãe. Ela enumerou objeções a todos os modelos de corte. Ah! Minha filha, explica para o cabeleireiro direitinho o que você quer. Vá na sorte. Existe sempre aquele indivíduo que, por mais que o Tempo o faça de presa, prevalece com a apreensão; apreensão perante circunstâncias irrelevantes como cortar o cabelo, fazer uma tatuagem. Não há nada de nocivo em um cabelo mal cortado. A tatuagem, caso não goste, será devorada – muito rapidamente – pelo Leão da Fatalidade.
Vanice preocupa-se com a vicissitude da sua psique. Concordo com ela. Isso é pretexto à hesitação, ao medo. Ainda assim, o medo vai culminar no funil dos finais... Se há um final, uma morte, um assassinato, por que cultivar essa horta que aflige? Por quê?
Corte de cabelo é a ciranda do Lazer. Vamos ousar ser deus. Brincar com simetrias e assimetrias. Olharmo-nos ao espelho e imaginar uma forma redonda, uma franja reta e desfiada. Tudo é deus. Continuo devota do meu Panteísmo.

3 de fevereiro de 2007

Cortesia

A melhor maneira de ser cortês com todos os convidados da festa da Vovó Maria é respingar-lhes cachaça goela abaixo. Com certeza, todos ficarão BEM à vontade. Despudorados. Dançarinos sublimes. Mestres da Oratória. Discípulos de Nelson Rodrigues.

1 de fevereiro de 2007

Jazigos Perpétuos

Pois é! Estou aqui,
Comendo o fruto que o pé da Vida me enfia,
Goela abaixo.
Estou nauseada.
É o mesmo sabor quase sempre;
O apetite já se gastou.
O apetite já nem reconhece as iguarias.

Ainda não tenho emprego,
Uso e abuso do dinheiro,
A cujo horizonte nunca tive acesso.
Vem com o corpo gasto do meu pai.

Extravaso e sempre me sinto cansada,
Exausta,
Em estafa.
Deprimida com o excesso de vida,
Decepcionada com a estirpe humana.

O ônibus pára.
O fluxo de carros da via ao lado é imensurável;
Quanta gente.
Quanto vigor de Deus.
Cada criatura assentada ao ônibus tem consciência de si.
Quanta agilidade de Deus.
O sinal está verde,
São tantos ônibus para virar à direita.
Vamos aproveitar essa empreitada.
A curva é feita...
Sacolas despencam ao lado oposto,
Forças batizadas pela Física.

Meu corpo é atingido por um sol já distante,
Das cinco da tarde.
Claridades imersas em florestas impalpáveis.
Sombra e sol...
Intervalo de sol e sombra.
Ainda dentro do ônibus.
Felizes são as populações dos jazigos perpétuos.

Desço, sem pensar, e a rua me recebe.
Ainda há um itinerário que precede minha casa.
Estou ligada.
Os deuses da Mitologia me inquietam.
E estão todos bem vivos...
Até as populações dos jazigos perpétuos estão bem vivas,
Já que existem tantas consciências daqui deste lado.