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21 de dezembro de 2009

O Alheio

por carolina fellet

Saí quieta e vazia para a rua.
Vi uma moça tomando suco de açaí.
ARGH!
Aquilo tem cor e textura de esgoto.

Pelo menos, preenchi-me com uma reação:
Ojeriza.

Saí quieta e vazia para a rua.
Um senhor com quem cruzei
Tinha olhos de fígado que trabalha mal.
Eles eram amarelados.
Fiquei pensando na cruz daquele homem.

Depois, passaram por mim:
Duas moças voluptuosas,
Um hippie-ressaca dos anos 70,
Um corcunda carregando verduras
E um jurista empedernido com seus processos.

Haja matéria-prima para minhas refeições diárias.

20 de dezembro de 2009

por carolina fellet

Durante uma fase do ano ela só vomita. Excede-se na dieta durante 365 dias e, num momento, o organismo se cansa de metabolizar empada, churros, rabanada.

17 de dezembro de 2009

Reprovada em Educação Física

por carolina fellet

Nunca havia tido problema com as matérias da escola. Matemática, média sete e meio, mas jamais no vermelho. Certo dia, sem prenúncios, um pessoal alto, musculoso e queimado de sol entrou na sala de aula de Ana Irene e apresentou a ela e a seus coleguinhas, que tinham entre oito e nove anos, uma tal de Educação Física.
Já era sabido entre a família da garotinha que o instinto de sobrevivência dela era demasiado. Ana Irene tinha medo de altura, de piscinas e mares, de pegar carona com pai de amiga que andava a mais de 60 Km/h.
Dona Ivete, mãe de Irene, achava que a filha tinha medo da vida, e temia que a menina estagnasse, enquanto suas contemporâneas estivessem progredindo.
Na cabecinha de Aninha, participar de um esporte que envolvesse bola era infringir a autoproteção inerente à condição humana. Principalmente quando o alvo eram os próprios corpos das pessoas participantes da disputa, como acontece nas queimadas.
Por isso, por mais que ela se destacasse nas redações extraordinárias que escrevia, teve que repetir um ano na escola por não frequentar as aulas de Educação Física.

Vingança é um prato que se come frio?

por carolina fellet

Soube de um noivo que estava a um mês do casório e descobriu que sua noiva o traía com um amigo dele que lhe seria padrinho de casamento. Até chegar ao altar, nenhum mosquito entrou na boca do aspirante a marido, já que este preferiu silenciar-se.
No fatídico dia do casamento, todavia, o noivo combinou com o chefe do cerimonial do evento de veicular – durante o “sim” – um vídeo que aquele tinha preparado para, teoricamente, homenagear a amada.
Com muita pompa, a cerimônia caminhou elegante até a exibição da filmagem, cujo conteúdo mostrava a noiva em momento “caliente” com o amigo do ex-futuro marido.
Este emudeceu na hora do “sim”, mas foi bastante eloquente neste pronunciamento: “já paguei a festa toda. Agora, aproveitem!”.
O próprio acaso dá conta de se vingar daqueles que são desleais. Como diria Cazuza: “se você achar/Que eu tô derrotado/Saiba que ainda estão rolando os dados”. Mas, às vezes, é preciso (e satisfatório) tomar decisão quando se está sob o próprio ponto de ebulição.

15 de dezembro de 2009

por carolina fellet

No fim do dia, Juliano à irmã Ana Catarina:
- Não comi quase nada hoje. Só uma Ruffles.
Ana Catarina replica:
- Eu comi frango grelhado, duas trufas de chocolate amargo e engoli uns sapos também. E minha capacidade para metabolizar sapos está bastante defasada.
por carolina fellet

NÃO às árvores megaostensivas que são oferecidas a Jesus durante o Natal. O Cara andava de sandália franciscana, poxa!

O homem que não conheceu a vírgula

por carolina fellet

Duas transeuntes. Um mendigo.
Mendigo: - Donamedáumtrocado?
A uma transeunte: - Só um minutinho, vou pegar na carteira.
Mendigo: eutôquerendocomprarumtênispronataltávinteedoisrealdonameajudaapagarsessentarealpraeumorarlánoaltodomorro...
A outra transeunte: - Tome aqui um trocado.
Mendigo: - Seprecisardomeuserviçoeucapinofaçofaxinavaicomdeuseupegobicotáprecisandodomeuserviço.

14 de dezembro de 2009

por carolina fellet

Sob vodka, vislumbram a beleza das situações.
E a garota é só sobriedade.

Acostumadas com o sexo,
Meninas pós-modernas se versam em roupas insinuantes.
E a garota ainda é regida pelos princípios de infância.

Semblante blasé dos transeuntes.
E a garota: “bom dia” e obrigada”.

De repente, todos agarraram uma seriedade.
E a garota é fluida.

Ninguém se revela ao outro
Sem Ipod, MP20 e vários outros andaimes.
E a garota é a cara, um disfarcezinho de olheiras.
E a própria coragem.

11 de dezembro de 2009

Autor dos livros “Estado ao Vento” (Funalfa Edições) e “Pequenas Coisas” (Nankin Editorial), o jornalista e escritor Gustavo Goulart me deixou postar neste espaço, em primeira mão, esta poesia inédita que foi assinada por ele em novembro de 2009.

Onde posso pôr minha tinta em ti?
Se nem sei onde pousa tua linha fria?

Qual cheiro usar de guia
Se tua primeira rosa já foi colhida?

Qual meu estatuto de poeta e homem
Que não sabe o teu, de ser clara e mulher?

E que cárcere é este

que insistes em me pôr?

Onde não há porta,
Chave ou janela...

Só amor?

8 de dezembro de 2009

por carolina fellet

Domingo.
Meninos adoram. Jogam bola com devoção.
Porque não processaram a cultura rígida que a vida habita
Nem se lembram da ladainha trazida pela segunda-feira.

O céu também se repete,
O mar se repete,
A configuração da vida se repete
E tudo está em dia. Sem negar fôlego.

Para os lúcidos,
O domingo traz um véu de melancolia,
Já que dá a quem o vive a possibilidade de ser só céu,
Só a vida genuína,
Só o divino.
Somente enquanto durar o domingo.

6 de dezembro de 2009

Ercília, a grã-grossa

por carolina fellet

Os três filhos receberam a mesma educação. Até pela faixa etária de cada um – o maior está com 29; a do meio, 26 e a caçula, 24 –, estiveram sob igual efervescência da mãe (dona Vivalda) durante o processo de domesticação da cria.
Por mais que dona Vivalda tenha investido maciçamente na educação dos três, Ercília, a filha do meio, desafiando alguns ensinamentos da mãe, gosta de posar de grã-fina. Roupas de estilistas italianos. Carro conversível. Joias H.Stern. Maquiagem sofisticada.
Porém, dentro de casa, bebe cachaça até sucumbir a um sono de 1001 noites.
Legítima grã-grossa.

Por que poesia

por carolina fellet

Porque com ela se vislumbra a eternidade: matéria-prima das pétalas, talhe perfeito de uma pata de onça, braveza ultrarrecente de um leão.

2 de dezembro de 2009

por carolina fellet

Duda é menina do bem. Os espíritas diriam: "alminha antiga" (já que não cultiva acidez nem coleciona desafetos para si). Mas a garota tem uma insatisfação (de que eu fiquei sabendo quando ouvi uma conversa dela no ônibus com a vizinha): ter 24 anos e ainda usar sutiã menina-moça”.

Memórias fetais

por carolina fellet

Adoraria ter lucidez da minha época de feto. Eu e meu submarino nadando em águas novas e perscrutando mistérios alheios.
por carolina fellet

No cursinho de inglês, Maurício, de treze anos, fala ao professor:
- Preciso sair um pouco mais cedo hoje porque tenho prova de topografia. Tudo bem?
Enquanto o professor dialoga com o aluno, Ana Bia, colega de Maurício, fica pensando sobre a utilidade de se estudar topografia aos treze anos. E conclui: “é para quando ele for conhecer o Everest”.
por carolina fellet

Há cinco anos, a primeira coisa que Catarina faz depois de acordar é alimentar Carmem, sua tartaruga.
Catarina continua viva e misturados a esse fôlego estão todos os seus hábitos. Portanto, mais uma vez, ela acorda e segue à varanda, a fim de cuidar do seu bichinho de estimação.
Chega lá, mexe no aquário e a tartaruga está sem reação. Talvez seja o calor. Troca a água e nada! Observa Carmem por um tempo e vê que ela está morta.
Sem a menor cerimônia, a morte vem sutil como a própria vida... De repente, acostuma-se com ela.

Patrícia, a caladinha

por carolina fellet

Beleza. Pai rico. Carro zero quilômetro para uso exclusivo dela. Namorado apaixonado. Sexo. Corpo legal. Extravasada à beça.
Predicados da felicidade para esta temporada carnal.
Mas ela é infeliz, a tal da Patrícia Caladinha.
O que lhe falta é ruminar um pouco o mundo: os tons de galhos novos e caducos das árvores, a partitura do bem-te-vi que amanhece mais cedo que o sol. Falta-lhe processar com a própria chama os fios que a enlaçam rumo à Vida.
por carolina fellet

Por anos a fio, Clarice é que incitava meus atos e filosofias. Devo a ela, portanto, enorme respeito e uma caloria generosa da memória.
por carolina fellet

Dentre os recursos desta multimídia viva inerente a mim, fico com a voz. Que magnífico extrapolar em palavra dita o pensamento.
por carolina fellet

Conhecer as profundezas das próprias águas é importante. Vir para a praia da existência é mais que isso; é imprescindível, porque a vida – pelo menos esta temporada material – é feita principalmente daquilo que os cinco sentidos reconhecem sem grandes esforços.

1 de dezembro de 2009

Recital de piano e transgressão

por carolina fellet

Todo mundo já sabe que o Brasil tem os poros abertos para culturas estrangeiras. Isso é muito positivo para trazer aos sentidos do povo brasileiro experiências extraordinárias. Até 1994 (eu com nove anos), meus ouvidos não conheciam Bach. Dali para frente, pude sentir o compositor dentro de mim. O que seria de Bach se não existissem os ouvidos? Numa excursão maior, chego à conclusão de que Bach está dentro da minha audição; às vezes, latente, embora sempre lá.
Não era disso que queria falar!
...
Realmente é superinteressante o país sofrer de xenofilia (e não xenofobia), mas existem certas culturas que não cabem no diagrama que foi feito em princípio para recebê-las. Liszt, por exemplo, fez várias composições fúnebres que combinam muito bem com o céu acinzentado de cartão-postal europeu. Com o Brasil de Fernanda Abreu, no entanto...