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25 de dezembro de 2007

Ho ho ho ho


A família está em movimento sobre o asfalto pouco obstruído da estrada que fora privatizada há um tempinho, felizmente. Jane é a caçula, tem vinte e dois anos. Ela pega o espelhinho que lhe fica na bolsa para qualquer emergência e/ou desconfiança estética. Com o refletor, observa se há carros vindo ao encontro do veículo em que está. Não há. A estrada está vazia. Ela então põe a cabeça para o lado de fora. É sesacional ir de encontro ao vento e, principalmente, olhar as árvores pelas quais se passou há muito pouco tempo atrás, embora elas já sejam pretéritas. É Natal. O inconsciente é imensamente volúvel, porque contemporiza a números de calendário e sofre ou goza conforme o algarismo que fulgura. Fim de ano, as comoções e sentimentalismos rasos são maioria poderosa.
Jane lembra-se da época em que se esperava com avidez pelo parto; o parto de uma Letícia, de uma Nina, de uma Carolina qualquer. No dezembro incipiente a gestação se iniciava e no 25 do mês, à meia noite, o troca-troca de presentes a excedia. Era a felicidade de mãe, da realidade exímia das crianças que se tornam o que desejam de uma hora pra outra.

23 de dezembro de 2007

Ex-namorado


Por que a esperança dos amantes mora na Rua Idéia de que as coisas podem mudar?
Ele é um troglodita, mas depois que casarmos adotará o comportamento de gentleman.
Ele nunca me pagou um copo de água, mas depois que casarmos me dará de presente várias luas de mel na Europa.
Ele é muito eloqüente perante os discursos machistas que decora, um a um.
Ele sempre me faz esperar uma hora, uma hora e meia.
No altar, no entanto, chegará bem cedo.
Ele nunca me faz surpresas,
Embora já tenha preparado um soneto de Camões para recitar no baile do casório.
Ah, ilusão!

Desilusão, desilusão, desilusão.
Lá vem o compasso da desilusão!

12 de dezembro de 2007


VICTORHUGUETES & LOUISVUITTONETES


É como esbanjar um matrimônio de que não fazes parte. Rubricar um nome que não te pertence.

7 de dezembro de 2007

Ótica


Não há como prescindir do verbo rodriguiano. Não, não há mesmo.
De repente, Ana chega ao banco – após o expediente – a fim de sacar uma quantia irrelevante no caixa eletrônico. Ela está desenxabida, com uma tênue dor de cabeça. Saiu sem muita vaidade, totalmente livre de qualquer ranço de cabotinismo; ao contrário, nos últimos dias tem se sentido feia à beça, além de estúpida e repugnante.
Antes que se atentasse a qualquer seta do Inconsciente, o par de olhos a conduziu ao rapaz mais belo (beleza é algo que não existe, embora erice um agrado aos sentidos) que estava à fila.
Como um chá, a linfa feminina simulou volúpias e egos presunçosos.
Depois, pudica, voltou ao amor monogâmico.
Haja tecnologia cerebral para desenraizar o não-civilizado, este cadáver que nos fede por dentro.

6 de dezembro de 2007

Justiça Divina


Estupefata.
A mulher, que sempre pensou extravagâncias e ousou filosofar com a própria autoria, está estupefata. As pessoas insistem em enraizar-se. E isso lhe traz neuroses.
A vida é desembasada. É órfã. O sentido supremo é a Ignorância e, no entanto, o esquema é Rei.
Buáááááááááááá.
Babá.
Creche.
Pré.
A, e, i, o, u.
2+2.
O Brasil é um país com dimensões continentais.
My boyfriend is handsome.
Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Ana C.
Vestibular. O que você vai ser?
Antes não se era. De que lhe valiam as moléculas? E a metafísica? Seu dente banguelo? O espectro do beijo? A espontaneidade do pênis? A cópula? O prenúncio do clímax?
Ele é engenheiro de produção.
Poética a profissão. Porque contribui para a gênese do Mundo. Das coisas inanimadas. Determina o diâmetro do frasco em que a pasta de dente se asila...
É-se um ínterim de engenheiro de produção.
Depois se cansa. E acaba por se separar da mulher. Arruma alguns casinhos extra-conjugais. As olheiras aumentam e as manias, em mesma proporção.
Nunca foi. Nunca viveu. Enclausurou-se. Asfixiou-se. Agora agoniza... agoniza anos, à espera da Justiça Divina, de que se é integralmente cego.

3 de dezembro de 2007

Doutô


Saíra de uma cidade mineira embaçada pelas civilizações mais possantes da região para consultar com o doutô. Quem lhe atendeu, no entanto, foi uma doutora. Bonita à beça, todavia, sem o menor traquejo e magra de psicologia.
Mariinha hesitava inclusive perante uma cadeira esculachada, típica das instalações dos serviços públicos brasileiros. Constrangeu-se toda, acomodou-se com as sacolas com que chegara ali e ocupou o menor espaço possível. As extremidades do corpo estavam geladas. Ai, meu Deus, quando me chamarem, o que é que eu vou falar? Mariinha estava diante da situação porque o patrão – dono da fazenda onde ela trabalha e mora – preocupou-se com a saúde da empregada, devido a um desmaio súbito que a acometera.
Com uma goma na boca, uma calça branca demasiado justa e uma blusa branca tomara que cara e um sapato branco com salto em madeira e altitude não-investigável: quem é Maria Arminda Guilherme? Está na sua vez. Antes que se pusesse à cadeira do consultório, a médica: qual que é o seu problema? Àquele instante, indubitavelmente, seria a pressão, elevadíssima, afinal, o nervosismo imperava a senhorinha. Tropeçando no vocabulário – com o qual não tinha muita intimidade – Mariinha disse à doutora:
O Celso ficô afRito quando soube dos meu desmaio.
A médica:
P
eraí, minha senhora, quem é Celso? Por que motivo a senhora desmaiou? Queda de pressão? Emoção? Susto? Eu não sou adivinha, sou profissional da saúde.
Sobrancelha voluntariamente empinada... Fragrância de soberba.
Mariinha:
O patrão lá da fazenda onde eu trabaio ficô sabendo dos meus desmaio. Eu não sei os motivo dos desmaio. Ele falô preu procurá um hospital.
A profissional da saúde usou como instrumento de investigação da condição física da mulher os adventos – já destruídos por maus tratos – da Tecnologia.
Que estúpida atitude a dos médicos em regra, que monossilábicos que são, recorrem a aparelhos inventados pela mesquinhez intelectual a que o Homem está submetido. Uma boa prosa pode detectar as panes no organismo humano.
Operou com cabotinismo as máquinas medidoras de saúde e nada diagnosticou em dona Mariinha.
A senhora está dispensada.
A situação por que passara alterou a química da doninha. Algum trabalho metafísico a tragou e ela não mais voltou à fazenda.



O movimento da Caveira


A irmã mais velha implicava com o namorado da irmã mais nova. Fazia-lhe a caveira do rapaz. De repente, longe de a relação se oficializar e de se estabelecer vitalícia conforme os impérios da cultura neo-moderna, o garoto morre em decorrência de uma apnéia.
No momento incipiente que sucedeu o enterro, a viuvinha referiu-se à irmã:
- A caveira que você prognosticava entusiasmada todos os dias, a carne que – malgrado ereta – nunca lhe valeu e nem viveu, é seu desejo póstumo e a mais nova encarnação. Está feliz? BOA NOITE!
Pranto.
Desejo de “deXistir”.
Os motivos dos instintos mais repugnantes se deleitam com o cadáver – rodovia de ratos e baratas e tatus e outras materializações horrendas.
Pranto………
Noventa anos se passaram.
A decomposição culminou em uma haste, uma serena haste de uma tulipa nascida em Ancara, na Turquia – região originária dessa espécie de planta.