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28 de julho de 2006

Boate

PRIVILÈGE, 27 DE JULHO DE 2006, JUIZ DE FORA, MINAS GERAIS

Libidos nômades que se inauguram em coincidências de genitálias e segregações de amor. Hoje o Amor abdica-se do seu Falo. Hoje o Amor é a cortina dos bichinhos, o céu provável, o vento que se comporta diferentemente no segundo andar... Vento Humano, inconscientemente sem réguas. Gráfico cardíaco que equivale ao estandarte da Vida. Arte: a única fidelidade que me sobra.
Corpos coerentes com sons lapidados por uma mão sem relevos de trabalho. Belas indumentárias que tapeiam os corpos, os rostos, os gestos, os gozos...
Indumentária orgânica, voluntária. Minha insipidez não beberica boas hipóteses, novas farturas de contemporaneidade. Minha insipidez perturba-se em cálculos para a grande isenção.
Antes, meu coração saltava como aves antigas de vôo. Pintinhos que cobiçam, em vão, a transcendência aos céus é que me moram. Ditadores pintinhos. Minha aptidão é anã. Não o quero. Não a quero. Não me quero. Não quero o Mundo.

Vida

TEXTO DO CONCURSO DO CAVE SOBRE O EINSTEIN

Minha vida: circunstâncias que, até então, foram incumbidas de sê-la. Eu era mero ser vivente que acompanhava o itinerário dos acontecimentos frígidos do dia-a-dia. Acho que sempre transcendi o Tempo sem perscrutar o que é ser. E agora, que tento dar uma sublinhada racional ao porquê da vida, dou as mãos à “dessabedoria” das coisas.
Um dia desses pensei na ditadura que me é inerente. Cheguei ao mundo sem manifestar palpites, na condição de vassalo de um tango infindável chamado ser humano. Ser humano é estar à mercê das manobras do tempo: tantas carecas em andamento, menarcas, menopausas, riso: vitrine das cócegas, unhas ultrapassando o limite do território que lhes fora dado.
O frio saiu dali, mas vive aqui em mim. Sou tão frágil; demando casaco e fico, por conta disso, distante desse incessante sexo com as vidas outorgadas dos ventos. Que ares estranhos esses que se embalam com a nudez dos “beira-mar” e que murcham ainda mais os velhinhos dos asilos.
O Mundo sempre foi o sindicato inquieto do meu âmago. Jamais enxerguei com meros olhos órgãos a mecânica dos céus, a aquarela clandestina das onças, o talhe das folhas. Desbotei a interrogação acerca do porquê de tudo. Quis saudar a fonte do castanho de tantos olhos que passaram por mim hoje; quis conhecer a matéria-prima que se esparrama com tanta singularidade em cada transeunte; quis o segredo da praticidade da aranha, o traquejo despudorado da maritaca.
Briguei com os espasmos das minhas pálpebras quando, com uma esponja eficaz, eles me isentaram do Mundo e abriram atalhos a pesadelos horríveis. Discordei da minha natureza em momentos de epidemia de idéias cancerígenas. Mas sou escravo. Sou a mísera consciência de tudo que me é.
Tanto fiz e tanto faço. Dedico-me a isto, àquilo. Sou atleta que extravasa a própria pressa. Bem sei que isso não é vida. Isto é uma grande tapeação dedicada ao tempo. Ao verdadeiro tempo. Ao tempo das versáteis modas dos céus. Eu poderia não sucumbir às demandas mundanas e dedicar-me à poesia de estar vivo.
Quando ponho em orquestra este pensamento meu, percebo fascínio em cernes alheios, mas eu não sou nem especialmente inteligente nem especialmente dotado. Sou apenas curioso, muito curioso.

25 de julho de 2006

Arredores

A redondeza, como uma devoção ao Comportamento Gigante, esquiva-se da vida. O céu priva as coisas do próprio reluzir. Dona Iranir e senhor Guedes são metódicos; é o que se espera de um casal que já transcendeu os oitenta e poucos. Tudo. O total. Os comportamentos de qualquer artesanato pousado no Mundo tornam-se prováveis pela repetição à qual se adapta. O bebê acostuma-se com os chiados dos chinelos da vovó. O som entrosa-se com a incipiente audição. E a audição se sociabiliza com sua ração. As engrenagens vão se encaixando a ponto de: confio em tudo; tudo funciona e não há por que perguntar por quê. Tudo isso é trapaça do Inconsciente. Quem envereda a desafios do Inconsciente beberica poções de Loucura e ameaça, conseqüentemente, a senha da Vida. Grande perigo. Humanidade, macieiras, céus, sóis, aromas, texturas, vôo, nado sob o domínio de um recente poeta. Artistas demandam muita cautela.
Pedro Augusto e Helena saíram. Foram extravasar a vida redundante de cada dia. Foram a uma festa que ressuscita a contemporaneidade dos anos oitenta. Cazuza, Legião, Xuxa, Angélica um pouco menos emperiquitada pelos arames do topo da moda. Muita ginga, muita intimidade, nostalgia benéfica.
O enxerto de gengiva com céu da boca impediu Marta de sair. Mas, esta nunca curtiu noites de sextas-feiras. O sábado sim, era-lhe sagrado a transcendências agudas que culminavam numa anestesia geral do corpo e da alma. Sábado. Enclausurada pela cirurgiazinha bucal. Talvez, sem esforços, faria um pacto com a aura de uma boate qualquer. Não se entenderiam perfeitamente. Cada qual em sua concentração recomendada.
Havia duas janelas em cada cômodo daquela casa enorme. Uma janela de madeira que, durante o verão, através de suas frestas, permitia que os ares índios aliviassem a temperatura dos corpos dos homens. Uma janela arrematada com lâminas de vidros que valorizavam o design da casa e apartavam os moradores do frio que lhes surgia nos invernos brasileiros como estiletes presunçosos. A parte de madeira estava aberta. A escuridão estava-lhe nítida. Os postes de luz ficavam na vigília das casas – as quais diziam: não estamos plenamente adormecidas; estamos em alerta; é preferível não tentar nos sabotar. É preciso artesanato humano para que a Natureza proteja-nos de suas ramificações. Casa escura pode fazer cócegas em instintos de furtos. Não se pode expor-se, porque se arrisca demais ao fazê-lo. Num futuro não tão invisível, farão indumentárias às árvores, uma vez que elas representam patrimônios comunistas.
A noite remete a caçula Marta ao imensurável Tempo. Que quantidade de tempo foi necessária para que as pálpebras da vovó caíssem gradativamente até o momento em que se selaram? E disso não se sabe mais nada. O afastamento da Terra através dos olhos obrigatoriamente omissos é tão chocante, hediondo, frígido, dolorido como, de repente, um brinquedo de mau gosto, uma porçãozinha de Nada degustar o Mundo através dos sentidos. Quanto tempo foi preciso para que os pêlos gringos que encarapuçavam a cabeça do vovô sucumbissem e deixassem-no mais próximo das ameaças dos vendavais com sua careca? O tempo é o proprietário das eternas novidades das estéticas do Mundo, o tempo é a oficina com infindáveis matérias-primas que incrementam o Grande Tempo das novas safras de existências. O tempo é o infinito reconhecido por uma consciência qualquer. O tempo é um dicionário de incansáveis conotações.
Enquanto espectros de empolgação e excitação e encantamento pinçam a consciência dos irmãos que saíram em busca de uma tapeação fajuta à vida, espectros de espanto fisgam a cútis de Martinha. Ela sempre se surpreendera com a inquietação do “existir” repleto de personalidade. Fascínios cutucavam-lhe a infância. Imaginara o remetente de cada coisa que fica exposta à Grande Coisa que atingira o mais alto pedestal: o céu.
A noite inaugurava-se a ela como um transeunte desenxabido, sem harmonia com as oferendas da vida. Parecia-lhe que o Fim, os ataúdes expostos na Avenida Rio Branco ser-lhe-iam a Felicidade plena. Inconscientemente e, justamente por isso, plena. Plena da tranqüilidade por que se espera. Mas o acaso estende os braços a quem procura abrigo. No ínterim de um beijo de pálpebras, veio-lhe à mente uma lista desmedida com um par de patins que a levaria às beiradas do Feliz.
Toda quietude, toda provisória morte das casas, das roseiras e das cores de tudo faziam jus a seu único capitão das linfas: não há em o que se pensar, não há pureza para se brincar de realidade. Se soubessem as crianças do quão maçante torna-se a penitência dos adultos, jamais elas incrementar-se-iam de gente grande. Seriam somente as ficções típicas da infância.
O nascimento daquela noite atiçara a tênue ponte que comporta maciços sentimentalismos da menina. Poderia ter dormido entediada com os pontos da cirurgia, poderia abdicar-se dos tarjas-pretas e desesperar-se, mas, entendeu-se com a poesia que se pode sugar da crua disponibilidade irrecuperável da noite.

21 de julho de 2006

Insight

Baralho lacrado das sensações. Ri-se da infração aos silvos das réguas. Chora-se perante uma carne viva que sucumbiu. Alegra-se diante da notoriedade do próprio ego. Frustra-se quando ele a troca por outra. A vida naturalizou-se. Mas, Stela espanta-se, involuntária e estranhamente com cada posição em que o Tempo fica.
Stela sempre fora inclinada a perscrutar o Mundo. Genuína observadora de Mundo. Observações, pensamentos, filosofias vão empanturrando-a de uma necessidade de extravasar, codificar o mistério que a assola. Optara pela dádiva das mímicas de Deus; decidira desenhar, pintar, rabiscar a Vida; os céus com seu temperamento inerente, as habilidades das formigas, o dessabido vôo, a tez das ervas, a gelatina dos peixes, o grande diário encadeado dos oceanos.
Artes. Quadros. Vida com apelos a fôlegos artificiais para suportar as demandas das burocracias. Artista que cobiça um destino posicionado sobre a própria arte trabalha os músculos da tolerância, da paciência. Mas faz fronteiras com a Metafísica; quase beberica a estranheza. Infelizmente, negam-lhe a entrada. Ninguém pode descobrir. Este é o mandamento fundamental da existência.

19 de julho de 2006

Farsante

Lílian completara anos. O dia não fora suave, alegre, como, geralmente, a biruta de quem festeja a vida se comporta. A garota, que acabara de fazer vinte e um anos, lembrou-se, no tapete desenrolado do dia inteiro, do seu tio que morrera havia três meses. Ele era o primeiro a lhe ligar, fazendo alterações na voz para tentar, sem sucesso, enganá-la. Os pontos do dia eram doloridos, longos, incontáveis.
Tristeza não tem fim. Acordara cedo e a eternidade que compõe cada dia estava munida de estiletes afiados e atuantes. Ganhara presentes. Não sentira nada. Perdera a empolgação de criança; da criança que se eriça perante um embrulho farto, com fitilho. Acomodou os presentes com a insipidez que lhe era o governo.
O céu, em sua coreografia infalível, encolheu-se... Apartou-nos do Mundo e a noite fez-se; estendida a todas as consciências deste pedaço de continente. Algumas estrelas se emperiquitaram e mostraram as caras. A lua, como não poderia deixar de ser, estava belíssima. Qualquer moda da Lua é bela.
A noite desvirginava Lílian. A campainha tocara...
Um motoboy ninava um embrulho. Provavelmente era um presente de uma tia velha, uma lembrança de uma amiga.
(motoboy): - Uma entrega para Lílian.
(aniversariante): - Sou eu mesma.
Lílian descera as escadas que a levavam às beiras da calçada. Sorria meio constrangida. Passaram-se uns trinta segundos – tempo necessário para a moça entrosar-se com a fechadura do portão. Num súbito, Vivian, Roberta, Rodolfo e Robson - o suposto motoboy - apelaram a uma potente clave de sol e entoaram um “Parabéns pra você, nesta data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida...”. A mocinha paralisara-se como quem vê uma anomalia qualquer da Natureza. Nunca haviam surpreendido-a daquela forma tão extraordinária. Era de costume, na data de seu nascimento, pessoas com quem ela não tinha grandes afinidades visitarem-na. Comprometimento com as burocracias. Cartões com dizeres denotativos, clichês sem tintas de batom do âmago.
Ficara enormemente feliz. Como há muito não ficara. Sentiu-se plena. Deusa onipresente. Festejara sua carne delgada e seu cerne maciço, farto. Regozijou. Pingos, pingos, pingos românticos de felicidade. De repente, o orgasmo da Felicidade; da genuína Felicidade.
...
Era uma terça-feira. Os farsantes; a máfia que armou o esquema de surpresas estava cansada. Haviam trabalhado no ínterim do dia. Foram-se a suas casas nos incipientes momentos da grande noite. Por volta das dez e meia.
Como arremate de um lindo embrulho de contos de fadas, Lílian recebera, quando os ponteiros quase fisgavam a meia noite, Felipe – carinha com quem estava mantendo um macio e promissor novelo. Entregaram-se a diálogos salutares às salivas e às essências e bebericaram diversas alterações no medidor de intensidade de libidos.
Verdadeiro final feliz. Ainda que pela eternidade de um dia.

18 de julho de 2006

18 de julho

Já vi esta idéia esfumaçada por outras consciências, mas como a tinha comigo, não considero plágio; sequer reprodução. Comemorar o quê? A mim há sim imensos e espessos motivos a se comemorar, uma vez que desde um tempo, tenho tido grande excitação pela Morte.
Agora, cores, balões que sugerem prosperidade, bolos deliciosos, risadas frenéticas, risadas de bruxas Onildas? A cada 18 de julho as pegadas aproximam-se do suave e atenuante Fim. Aniversariar é a decadência vital. São as células nos rejeitando. Cansando-se de ficar em nossa vigília.
Tenho apetite por faixas de lamento, telefonemas de pêsames, lágrimas de profunda tristeza. Estou me embaçando a cada número que se soma. Uma grande e única palma de mão sinaliza a despedida. O possante sofrimento de ir-se e apartar-se dos que se ama.
A morte engatinha como a Vida.
A morte é uma mulher dissimulada como a vida. Às vezes se pensa em um grande segredo. Num grande tesouro que uma mulher linda e secreta camufla. Mas, amiúde, pensa-se que as conseqüências são meras conseqüências sem causas, sem sentidos transcendentes.
Que a morte seja melhor que a vida. Que ela se disponibilize a extirpar a consciência. Anseio pela Inconsciência.

14 de julho de 2006

Centro da cidade

Tapetes chiques sobrepostos à nudez vital. Taco insosso, chão antiestético. Vida. É importante emperiquitar-se e afofar-se para que não haja rejeições à própria pessoa. Que o enxerto prospere. Assim fizeram Nívea e Maria Antônia; esta mãe daquela.
Esperam a claridade do dia reservar-se; abster-se da obscenidade de fulgurantemente ser. À medida que o céu se acorcunda, elas se enfeitam, elas se tapeiam para ir à rua. Ao centro de Juiz de Fora. Minas pequena é tão tímida a ponto de se portar como cão vira-lata que nitidamente se constrange ao cruzar com um espectro vivo em certas avenidas, ruelas, passarelas.
As moças saem para comprar cancelas à potência prepotente da Natureza: cremes depilatórios, esmaltes, aperitivos... O Universo não se cansa da incumbência de detetive. Persegue-as, como se infiltra despudoradamente na vida da humanidade. Grande cutícula.
Sinais a indicar o momento de se atravessar as avenidas, euforia dos bichos humanos, crianças entediadas em colos que lhes são o melhor conforto, aglomeração em nesgas de calçadas a comportar toneladas de cardápios humanos maciços.
Entra e sai nos patrimônios comunistas. Alguns esboços da Existência. Centro da cidade. Mendigo, velho caído, novo rico, pretensões truncadas das juventudes. Saltos e artificialidades. Tende-se a se privar dos incrementos, porque, à medida que se chega à beira da goela da Vida, sente-se, possantemente, as mãos, as grandes mãos do despropósito.

13 de julho de 2006

MAXI PÃO

Aurélio tem uma padaria. Diferentemente dos velhos proprietários de recintos comerciais, o homem exercita seu xodó pela loja, através de maciços investimentos na estampa do lugar, no perfil dos pães e dos aperitivos e no linguajar demasiadamente formal dos funcionários. Não preza pela legítima qualidade, mas pela repercussão e pelo status de sua posse.
Não zela pelo impecável, pela limpeza, pelo bom atendimento, mas pelo luxo. Cada vitrine, cada cadeira e cada uniforme têm seu próprio R.G.. O anti-convencional é interessante, ainda que espante pessoas quando estas mantêm contatos incipientes com o Novo. Mas, Sr. Aurélio, todo empertigado, insiste no requinte diário.
As preparações de fim de semana da juventude já me levam à exaustão, o incansável processo de se emperiquitar amiúde equivale a meu lápide.
Para freqüentar a Maxi Pão é necessário escolher uma indumentária que condiga com a aura do local; é preciso coreografar as mandíbulas, a fim de que o ato primitivo de se comer seja disfarçado pelos pontilhados da civilização; é imprescindível se acostumar com a morte do você e com a ressurreição de termos já carecas da gramática.
Uma vez que o luxo é a tônica do quarteirão onde fica a padaria, sugeria a Aurélio, a Sr. Aurélio, que arrematasse o requinte da loja com o hastear diário de uma bandeira com códigos que nos aludissem ao espaço. Como uma fita acetinada que leva um embrulho de presunto à beira da Perfeição.
Platéia de saudações à Maxi Pão.

Dentadurinhas

A Ditadura incumbe a massa, os sentidos da Vida. E afasta-se, sem remorsos, dos vitimados pela obrigatoriedade de ser. Ser, de repente, a plenitude de um céu puro, sem interferência de nuvens; ser, num grande susto, o lamaçal de tristezas sem remetentes a que ficamos submissos.
Ora em esteiras de martírios, ora em planícies tênues de felicidadezinhas, o Amor vigora. Vigora. Porque é a bússola-mor da condição humana. Às vezes extirpa integralmente, em uma única empreitada, os bons ares; e aí, estampa-se, instantaneamente, a necessidade de se abster do Real. É preciso editar a realidade com temperaturas artificiais, com tons mecânicos, com alucinações alopatas. Farmácia. Felicidade postiça: dentadurinha. Não há o sorriso oriundo do âmago e estendido na coreografia das arcadas. Existe um paliativo antinatural ao mal. Deuses alquimistas e farsantes que inibem as intempéries. Reprimem a dor dessentida.
Importar salvações demanda trabalho árduo... Chega-se à exaustão. De lá de dentro é preciso tirar as ampolas de venenos naturais. Mas os sentidos são iludidos pelas praticidades e, inevitavelmente, sucumbem às lápides humanas. Drogas. Ciência avançada. Tecnologia anti - monotonia. Excessos. Abrevia a vida. Aos poucos, perde-se uma fração do que é bom numa fajuta tentativa do Bem. E a morte se mostra viva gradativamente, com a chegada da transparência cósmica da Vida. Da lâmpada acesa inclusive nos momentos de ensaio da morte.

Amor

A voz lhe fora bloqueada. Nascer com uma habilidade e perdê-la ao Acaso é sofrido. Golpes do Deus Onipresente. Um lindo sentimento reduzido a um tapete de palavras estava sendo digitado quando, num aperto trocado de botões, perdera tudo. Memória fraca. Reproduções do Original geralmente são falíveis. Sequer tentara repetir o que lhe fora embora.
A tônica, como a tônica de qualquer expressão sentimental de sua vida, era o Amor. O Amor lapidado pela razão afiada, inevitavelmente, era amor deturpado e desconfortável. Procurara desenvolver o auto–amor após uma marcante aula de geografia explanada por um professor troglodita que lhe dissera: amor– próprio é coisa de hermafrodita. Sempre tivera fascínio pela poética profissão de professor. Desvirginar mentes com sapiência era-lhe tão magnífico. Mas Agildo – este é o nome do mestre – sabotou inconscientemente um sentimento cândido de mocinha de 14 anos. Tatuagem de agulhas. A jovem tentou desenvolver, desde aquele momento, um amor-próprio que suprisse a carência de um amor altruísta. Suas próprias vaidades, que visavam ao rebolar de sentimentos alheios, inibiram-se ao ponto de beirar a morte católica. Acreditava que o amor próprio era o espectro do genuíno Amor. E o professor lhe diluiu o sentimento.
Amor egoísta epidêmico. Amor ao inanimado. Frigidez com o Amor de alma, com o amor das genitálias. Amor pianista, Amor artesanal. E alma que idealiza e se contenta com o utópico sentido de idealizar.

10 de julho de 2006

Overdose

Sonhou os aperitivos que os olhos orgânicos degustam no ínterim de um dia. A realidade mecânica diluía-se no ensaio da Morte. O lustre dissolvia em ventos inertes, embora possantes. O quarto reduzia-se à estampa de um projeto de morada. Projeto ainda em processo, como a vida quase consolidada, como os esboços quase desempenhando a incumbência de ser uma mísera e ignorante conseqüência.
Os céus repousaram um pouco. Capacidade dos sonos; dos sonhos. A língua lambia abajures derretidos, lustres derretendo e todo o porte da civilização empoeirado. Não mais lhe havia concretizações oriundas de mãos humanas. Retornara-se ao primitivismo. Ao primitivismo benéfico. Às arvores e às ginásticas para se pegar o fruto delas e devotar-se às aptidões da Natureza. À naturalidade de vira-lata. À nudez denotativa e conotativa.
O sono era – lhe profundo e a transcendência era exageradamente verossímil. Os sentidos apalpavam a realidade espectral. Entrega despudorada, destemida à vida. Ao momento que se agrega a momentos e culmina em dia-a-dia. Dia-a-dia; noite-a-noite. À noite a existência parecia-lhe mais valiosa. Ouro de Brasil. Os dias não lhe faziam bem.
As oferendas da morte não aguda abusavam de todos os talentos divinos de Emília. A musicalidade do ato de sonhar a sedava. De repente, um barulho material, comido pela audição explícita, interagia com o devaneio da mulher. Miscíveis mundos... Extensão de Mistérios.
Empanturrou-se de Mistério. Arrepia-se perante folhagens, cores de olhos, estaturas, quantidade de carne disponível em corpos fartos de bichos, insetos, fetos.

Descoberta

Deveras alcançara a Inteligência. Muniu-se de erudição e, de acordo com uma comilança enorme de Tempo, acreditava que sabedoria era o espectro inerente à culturalização da mente. Felicidade maléfica, nociva. Efeitos instantâneos e fugazes.
Atingira a Inteligência numa noite, intempestivamente, em que questionou o Mundo e seu agregado estado de gerúndio.

5 de julho de 2006

Aniversário (emenda)

ESTE TEXTO É DEDICADO A UMA RECEITA QUE DEU CERTO: AO MARCELLO

Telefonemas, flores, olhos nos olhos. O dia em que se nasce ganha a memória dos céus, das formiguinhas que transitam aos arredores da casa, da mais atual conjuntura. O dia parece estender uma bancada especial àquele que faz aniversário.
Dezoito de Julho. Aniversário de uma Carolina, de uma Dolores, de um Saulo, de um Mauro, de um Eduardo... Todos acordam sobre o salto do constrangimento. Parece que detêm extravagâncias e que seus pais e irmãos ou os mais cúmplices, que são os primeiros a parabenizá-los, estão maltrapilhos, empobrecidos.
Parece-lhes que a nobreza daquele dia é oriunda de atitudes ilícitas e/ou de ações relapsas. Aniversariar constrange, inibe, maltrata. Toda pequenez do aniversariante se reúne em um mostruário colossal... Toda imundície à mostra. E os olhos de quem a vê, num comportamento canastrão, acaricia-a e a tapeia.
-Feliz Aniversário a você que é um doce... Um amor de pessoa... Um(a) menino(a) tão especial.
-Obrigado(a),,, obrigado(a),,, obrigado(a).
Reais emoções, emoções artificiais. A estas se poderia gravar todo pronunciamento dos que sofrem o castigo das comemorações.
Enquanto a vida útil do dezoito de julho resistir, haverá estouros esmagadores para festejar os objetos vivos que ainda prevalecem. Quando o céu se recolher e encolher o Universo, Carolina, Dolores, Saulo... ... Já estarão encarapuçados de mais quantidade de existência e livres das pendências sociais de receber telefonemas convenientes.
Que paguem juros, contas de água, contas de luz... Que protestem o aumento dos impostos. Que resolvam esses tipos de burocracias, mas, quanto a aniversários, deixem-nos às pinceladas da Grande Ampulheta que os comporta.

1 de julho de 2006

Acordes

Sábado. Toda a parafernália soprando ao encontro da Felicidade. Isenção de pendências sociais. Liberdade à Vida. Esta oferece às vezes o nocivo... Vai, sutil e gradativamente, extirpando as boas possibilidades de se viver bem, com tranqüilidade ao menos.
Ontem apelei a meus dotes culinários, decidi fazer um bolo, uma vez que o ovo do tédio iniciou-se num processo de trinca. Tapeio. Tapeio com meus próprios novelos... Com os tricôs que, quase outorgadamente fui induzida a aprender fazer. Ainda bem que desenvolvi o escapismo através das mãos... Ainda bem que consigo dissimular fortes intempéries com o compenetrado comportamento das palavras.
Mas ainda há restos de um côncavo solitário... Que atrai poeiras, que sofre o frio sem anticorpos, que sofre o calor que esturrica, que sofre a prepotência inabalável dos Tempos ditatoriais.
A orquestra flui nos ensaios... A consciência fica em vigília e em infindável refeição do bom, do apetitoso. Num súbito, quando se chega a hora da amostra, há um deslize, um tropeço inconsciente. E me quedo a depressões. Malditas, bruxas Onildas; não estava apta à vida.
Meu muro de lamentações tem massas salgadas frescas... Que não esbarrem em sua mais nova arquitetura. Meu muro de lamentações vive em reformas. Mas o coquetel de vitaminas e antidepressivos e tarjas pretas tem me ajudado a suportar. Suportar um gringo intragável que insiste em se alojar nas minhas dependências.