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19 de fevereiro de 2007

Cadáver à moda da Rede Globo

Enterraram o vovô com o blazer irretocável. Azul marinho, beirando o preto. Camisa branca de gola engomada e uma gravata discreta, de seda. A fisionomia já estava comprometida pelos oitenta e dois anos e suas mazelas inevitáveis. Ah! Vovô, quanta saudade.
Outro dia, ao mexer na caixa onde guardo velhas fotografias, assaltou-me a imagem dos cabritinhos que, amiúde, você comprava para nos agradar. E enchia aquele sítio lindo que você fez também para nos agradar. O que me comoveu e me encheu de um prazer nostálgico foi a mamadeira que você comprava a cada um dos cabritinhos. Dava-lhes leite pela mamadeira. Que alma imensurável. Daí, já envolvida com os raios de nobreza que lhe emanavam, fiquei frente a frente à outra imagem sua: você estava tirando cochilo, debaixo de um banco de madeira, sobre uns jornais. Que homem. Que Homem.
Tudo que você fez em Terra ganhou uma repercussão toda peculiar. A Natureza capricha em algumas de suas empreitadas vitais. Há tempos não o encontro em outras gentes. Quanta carência.
No Rio, uma vez, todos ávidos pela festividade da virada de ano, ao abrir o armário da vovó, hipnotizei-me com a cena ingênua que o senhor montou: seu martelo – sujo de tintas e do próprio tempo – fora colocado sobre uma roupa de linho branco da vovó. Chamei todos que estavam na casa da praia e rimos da sua pureza. A pureza é tão exígua que, quando se a vê, sente-se algo incomum. Você continua sendo incomum.
Até no cume da vida, até diante da morte, houve uma circunstância memorável ligada a você. Enterraram-no com o tronco requintado e, no entanto, sem as calças. Cobriram-no de flores. Talvez gastaram a Floresta Amazônica inteira, mas não deixaram suas calças ao deus dará. Quem o preparou ao final estético, encantou-se pela calça... esta deve estar vivendo a marcha de um par de pernas anônimas.
Garanto que, conforme seu talento à generosidade, você está muito feliz a perscrutar essas perninhas que, clandestinamente, herdaram suas calças.

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