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24 de maio de 2007

Comilança de Cadáveres

Tenho um constrangimento para comer cadáveres. Uma potência inconsciente me alude ao tempo em que aquela vida esteve vida, em atividade.
- Terezinha, o que tem pro almoço hoje?
- Pra você, Tâmara, fiz um franguinho grelhado. Se você quiser, posso cozinhar um macarrão e fazer um molhinho de azeite com ervas finas. Você quer?
- Tá perfeito, Terezinha.
Frango grelhado.
Quando eu tinha meus nove anos, papai me deu três pintinhos. Leonardo, Vicente e Patrick, esses eram os batismos dos bichos. À tarde, assim que eu chegava da escola, eles eram a minha ilusão, o meu veneninho alienante daquela fase na qual a gente crê que as coisas mudam e que tudo sucumbe à perfeição. Quanta ingenuidade.
A metafísica, profissional exímia, no cumprimento de seu trabalho, fê-los crescer. Tâmara enchia-se de pudor perante aquelas patas de galo/galinha esquisitas à beça. Enchia-se de ressalvas àquele bico capaz de ferir. Ela não se lembra do destino dos animaizinhos, embora se lhe esteja intacto na memória um episódio que envolvera os três cocoricós.
Um dia, dona Letícia – a mãe – estava preparando uma refeição à família. De repente, do segundo andar da casa, ouvem-se berros e imediatamente, a doméstica, a Tâmara e o caseiro – todos que estavam na casa – aproximam-se da cozinha, com a pretensão de prestar-lhe socorro.
O socorro poderia ser prestado somente pelo caseiro. Não ouso alterar o fluxo da Natureza e dizer que existe uma mulher destemida, quando se trata de barata. O berro angariou mais adeptos. Agora, variava-se em contralto, soprano e tenor. Alguma das três tem voz grave.
Seu Valdemir assassinou a cascuda. Num despiste mal sucedido, tampou a cadaverzinha no quintal da casa por onde transitavam os três pintos. Tâmara era integralmente atenção. Estava à janela, quando assistiu a um espetáculo que a biologia aborda com tanta leveza: a cadeia alimentar. Vulgo: a porcança.
Um pinto começou a degustar o corpo da barata. Depois vieram os outros dois para participar da comeria. De repente, não há corpo, não há resto. A barata está literalmente desencarnada.
Num tempo depois, sobre a mesa de alguma família tradicional, que elege a refeição como hora sagrada, em que todos devem estar à mesa, o frango estará lá. Saudável. Bronzeado por um forno feito à tecnologia mega-avançada. Num hemograma desse frango, constaria: excesso de proteína. São os ecos da, já desencarnada, barata.

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