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24 de maio de 2007

A personagem, que já nasceu aos setenta e cinco de idade

Lísia Galhardo, consciente de seu temperamento, optou por morar sozinha. Tinha lá seus convívios com o pessoal da escola de música – ela toca piano – com as caixas de supermercado, com o dentista, com o médico que lhe servira sempre, com algumas amigas de infância que se mantiveram na cidade. A senhora tinha umas ressalvas com a intimidade. Por isso, esquivou-se da vida de casal, da vida diária, em conjunto com outras pessoas. No entanto, à medida que o tempo foi se lhe insistindo, um velho jargão cuja tônica diz que é impossível viver sozinho, penetrou-lhe, penetrou nos organismos mais profundos daquela existência. Eu preciso fazer alguma coisa que movimente a minha mente. Estou prestes a ser tragada por uma depressão. Deus me livre!
Tinha o piano, antigo, herdado de sua mãe – pianista exímia, fiel dos clássicos de
Bach e Tchaikovsky. Desgastava-se ali. O amor àquilo se lhe transbordava. Mas Lísia precisava sair de casa, observar como a Natureza comportava-se perante as variações climáticas, observar o baralho entre gentes mais velhas e gentes mais novas, observar a moda da juventude, observar a condição humana, enfim.
Abriu o guarda-roupa, cujo design é incrementado por uma espécie de franja, por uma madeira extremamente lapidada, e hesitou diante das tantas roupas que lhe enchiam o armário. Algumas tinham estampas obsoletas, mas, a uma senhora, não soariam dissonantes dos padrões universais da moda. A moda hoje, aliás, é uma miscelânea, uma constituição encadernada com luxo, embora sem conteúdo algum.
A velhice dá um prazo às pessoas de exercer a ciência da perfeição. Lísia, portanto, antes de fazer escolhas, foi à janela ver como estava o tempo e pressupor como ele se desenrolaria ao longo do dia. A velhice costuma ser precavida. Vestiu-se, com a elegância de praxe. Foi ao centrinho, a fim de contracenar com gente de todo naipe.
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