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29 de junho de 2007

Matusalém

Waltencir, o Cizinho, profissionalizou-se em artes cênicas aos cinqüenta e sete anos, após ter sido carteiro, taquígrafo, office boy, entregador de jornal e tantos outros trampolins típicos de carreiras incipientes de trabalho.
Em 2074, aos 78 anos, graduou-se em Direito e advogou na defensoria pública. Por conta desse rompimento da obviedade, virou notícia, e foi convidado por várias mídias a participar de entrevistas, depoimentos e fotografias.
Numa de suas aparições, desta vez num programa exibido às madrugadas pela televisão, uma doninha solteirona e insone contemporizou ao semblante do senhorzinho, a tudo o que ele dizia, aos trejeitos e à aura que emanava dele. O porquê, deixo por conta da Metafísica, mas o velhinho protegeu, ainda que fugazmente, a espectadora de uma melancolia.
Cizinho tem o queixo protuberante. Diria o doutor Edison Stecca, dentista que sempre disserta sobre as expressões hermético-odontológicas, que o velho é um prognata. Talvez por esse desalinho de mandíbulas, é que a dentadura do senhor matusalém não lhe respeite o comando. O movimento da seqüência retilínea dos dentes postiços fica sempre dissonante da gesticulação inerente às palavras pronunciadas. Em poucas palavras, é uma dança bucal.
Na biografia do homem, indubitavelmente, constaria o jeito manso, sereno como fala. Em pouco, uma revelação: ele é preso às tradições mineiras. Waltencir é mineirinho de São João Nepomuceno.
Como ator, envolve-se sempre com as dramaturgias que têm o tempo como personagem-mor. Há dez mil anos, cinqüenta anos em cinco, etc.
Waltencir parece não sucumbir ao tempo. O corpo denota muito mais idade que a registrada. Deus provavelmente está prorrogando a oportunidade de ele se engajar em outros trampolins; quem sabe pregar a palavra de Cristo no centro da cidade; quem sabe foragir-se da crise venezuelana e tocar flauta no calçadão de Juiz de Fora.

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