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25 de julho de 2006

Arredores

A redondeza, como uma devoção ao Comportamento Gigante, esquiva-se da vida. O céu priva as coisas do próprio reluzir. Dona Iranir e senhor Guedes são metódicos; é o que se espera de um casal que já transcendeu os oitenta e poucos. Tudo. O total. Os comportamentos de qualquer artesanato pousado no Mundo tornam-se prováveis pela repetição à qual se adapta. O bebê acostuma-se com os chiados dos chinelos da vovó. O som entrosa-se com a incipiente audição. E a audição se sociabiliza com sua ração. As engrenagens vão se encaixando a ponto de: confio em tudo; tudo funciona e não há por que perguntar por quê. Tudo isso é trapaça do Inconsciente. Quem envereda a desafios do Inconsciente beberica poções de Loucura e ameaça, conseqüentemente, a senha da Vida. Grande perigo. Humanidade, macieiras, céus, sóis, aromas, texturas, vôo, nado sob o domínio de um recente poeta. Artistas demandam muita cautela.
Pedro Augusto e Helena saíram. Foram extravasar a vida redundante de cada dia. Foram a uma festa que ressuscita a contemporaneidade dos anos oitenta. Cazuza, Legião, Xuxa, Angélica um pouco menos emperiquitada pelos arames do topo da moda. Muita ginga, muita intimidade, nostalgia benéfica.
O enxerto de gengiva com céu da boca impediu Marta de sair. Mas, esta nunca curtiu noites de sextas-feiras. O sábado sim, era-lhe sagrado a transcendências agudas que culminavam numa anestesia geral do corpo e da alma. Sábado. Enclausurada pela cirurgiazinha bucal. Talvez, sem esforços, faria um pacto com a aura de uma boate qualquer. Não se entenderiam perfeitamente. Cada qual em sua concentração recomendada.
Havia duas janelas em cada cômodo daquela casa enorme. Uma janela de madeira que, durante o verão, através de suas frestas, permitia que os ares índios aliviassem a temperatura dos corpos dos homens. Uma janela arrematada com lâminas de vidros que valorizavam o design da casa e apartavam os moradores do frio que lhes surgia nos invernos brasileiros como estiletes presunçosos. A parte de madeira estava aberta. A escuridão estava-lhe nítida. Os postes de luz ficavam na vigília das casas – as quais diziam: não estamos plenamente adormecidas; estamos em alerta; é preferível não tentar nos sabotar. É preciso artesanato humano para que a Natureza proteja-nos de suas ramificações. Casa escura pode fazer cócegas em instintos de furtos. Não se pode expor-se, porque se arrisca demais ao fazê-lo. Num futuro não tão invisível, farão indumentárias às árvores, uma vez que elas representam patrimônios comunistas.
A noite remete a caçula Marta ao imensurável Tempo. Que quantidade de tempo foi necessária para que as pálpebras da vovó caíssem gradativamente até o momento em que se selaram? E disso não se sabe mais nada. O afastamento da Terra através dos olhos obrigatoriamente omissos é tão chocante, hediondo, frígido, dolorido como, de repente, um brinquedo de mau gosto, uma porçãozinha de Nada degustar o Mundo através dos sentidos. Quanto tempo foi preciso para que os pêlos gringos que encarapuçavam a cabeça do vovô sucumbissem e deixassem-no mais próximo das ameaças dos vendavais com sua careca? O tempo é o proprietário das eternas novidades das estéticas do Mundo, o tempo é a oficina com infindáveis matérias-primas que incrementam o Grande Tempo das novas safras de existências. O tempo é o infinito reconhecido por uma consciência qualquer. O tempo é um dicionário de incansáveis conotações.
Enquanto espectros de empolgação e excitação e encantamento pinçam a consciência dos irmãos que saíram em busca de uma tapeação fajuta à vida, espectros de espanto fisgam a cútis de Martinha. Ela sempre se surpreendera com a inquietação do “existir” repleto de personalidade. Fascínios cutucavam-lhe a infância. Imaginara o remetente de cada coisa que fica exposta à Grande Coisa que atingira o mais alto pedestal: o céu.
A noite inaugurava-se a ela como um transeunte desenxabido, sem harmonia com as oferendas da vida. Parecia-lhe que o Fim, os ataúdes expostos na Avenida Rio Branco ser-lhe-iam a Felicidade plena. Inconscientemente e, justamente por isso, plena. Plena da tranqüilidade por que se espera. Mas o acaso estende os braços a quem procura abrigo. No ínterim de um beijo de pálpebras, veio-lhe à mente uma lista desmedida com um par de patins que a levaria às beiradas do Feliz.
Toda quietude, toda provisória morte das casas, das roseiras e das cores de tudo faziam jus a seu único capitão das linfas: não há em o que se pensar, não há pureza para se brincar de realidade. Se soubessem as crianças do quão maçante torna-se a penitência dos adultos, jamais elas incrementar-se-iam de gente grande. Seriam somente as ficções típicas da infância.
O nascimento daquela noite atiçara a tênue ponte que comporta maciços sentimentalismos da menina. Poderia ter dormido entediada com os pontos da cirurgia, poderia abdicar-se dos tarjas-pretas e desesperar-se, mas, entendeu-se com a poesia que se pode sugar da crua disponibilidade irrecuperável da noite.

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