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30 de maio de 2006

Anúncio de Jornal

Prepare-se para um calçadão empapuçado de gentes e gentes a esbanjar gritarias, ironias, tragédias, fofocas, seriedades, preocupações... Todas as musicalidades de um pronunciamento enfim. Telefone a incomodá-lo pelo ínterim das maçantes horas a se concluirem a um dia de calendário.
Um dia do calendário encarapuça-se de penitência de 414 anos. É ridículo prolongar exageradamente as penas; estendê-las ao Utópico. Os juristas têm acordo com o Tempo? Mesmo após a morte do criminoso este será enclausurado pelos fogos do Inferno ou preso por nuvens negras? Prisão perpétua já soa possante o bastante a audições à deriva.
Triiiiiiiim.
Triiim.
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim.
- É aí que estão precisando de empregada?
Com doçura postiça:
-É sim. Eu preciso de referência de carteira, telefone da referência e telefone para contato direto com você.
O Brasil é ávido por chance. O Brasil mantém-se em alerta. Incessante alerta. Parece que, às vezes, uma inércia encobre as casas humanas. Mas todos peregrinam com esperanças... Apelam ao Cosmos... Oram. Cobiçam a dignidade.
Um rapaz, traquejado, estendeu sua bonita e cautelosa voz ao telefone:
(aspirante a emprego de empregada doméstica) - Bom dia, com quem falo?
(Beatriz, proprietária da casa que demanda uma empregada doméstica) - Beatriz.
(aspirante) - Beatriz, é você que colocou um anúncio no jornal a respeito de empregada doméstica?
(Beatriz) - Foi meu pai quem o fez, mas você pode tratar comigo sem problemas.
(aspirante)-OK. Olha só, quais são as cláusulas necessárias para o emprego?
(Beatriz) -Eu preciso de referência... ... ...
(aspirante) - Tem problema ser homem para desempenhar os trabalhos? Eu já tenho experiência com isso.
(Beatriz) - Infelizmente sim! Desculpe-me. Boa sorte.
Com a mesma delicadeza com que ele se apresentou ao telefone, despediu-se de Bia.
Bia ficou a perscrutar a situação do rapaz. Poxa, ele fala tão bem, é tão educado, poderia estar envolvido com um empregão. Afinal, os serviços domésticos são pesadíssimos e abocanham, geralmente, as pessoas que não tiverem chances de freqüentar uma escola, desenvolver alguma técnica específica. A manhã de Bia teve, como teto, a condição a que a majoritária população brasileira está submetida: trabalhos braçais, que necessitam de integral comprometimento do corpo, meramente do corpo. Não lhe sobra tempo (à população nativa) para atender às carências da alma. Almas etíopes. Almas abandonadas. Almas órfãs, em prol de sobrevivência. Em prol de um apego sem motivos à vida.
O telefone não pára de tocar.
Bia já não mais se irrita.
As pessoas explanam-se com entonação de empolgação e fé; muita fé. Fé em se reduzir a atividades primitivas para fisgar a dignidade. É preciso ser bicho para vestir-se do Digno.
Bia nunca trabalhara. Dedicava-se exclusivamente a leituras que a faziam feliz ou que preenchiam os déficits estranhíssimos de sua alma. A alma, assim como o corpo, assim como a Vida em suas flexões versáteis eram-lhe suma estranheza.
O que a incomodava agora era a avidez das pessoas. Ávidos em nome de uma Vida que não lhes garante sequer o trivial. Que amor de Deus, que amor incondicional a uma enorme ditadura ultra-nazista.
Bia está com pedrinhas de comoção sobre seu terreno de sentimentalismo. Enquanto a generosidade das mãos ocultas da Vida proporcionou-lhe riqueza, luxo, conforto... A mesquinhez das mãos foragidas da Vida não garantiu à massa homogênea de gentes o mínimo esboço suficiente à tranqüilidade.
Triiiiiiiiiiiiiiiiim.
Triiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim.
Triiiim.

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