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28 de maio de 2006

Justiça Velada

A verdadeira Themis ainda não foi codificada pelos homens. Quando a justiça – inerente à condição humana em sua profundeza – sai de seu endereço clandestino e peregrina pela razão, esta a mutila e o exercício da justiça não caminha íntegro como sugere a Natureza.
Há quem possua poucas ampolas da justiça e, por conta disso, sabota vidas, construções, almas. Há a necessidade por cujas janelas transitam os ventos do desespero e deste, às vezes, nascem os delitos: roubam em prol dos apelos da Vida; roubam porque se tem fome, sede, frio, doença. Há bandido e Bandido: este possui de nascença uma epiderme de fel; é que a alma dele fora submetida a um banho de químicas nocivas. Aquele, no entanto, infringe alguma lei em respeito a uma súplica instantânea que lhe vem conforme os passos das ameaças que se organizam aos pares com as circunstâncias.
A punição a infratores é quase sempre uma infração colossal à Vida. Usam do sadismo para alinhar os desvios. E o sadismo é pretexto para a autopromoção de quem detém alma anêmica. O Sadismo é uma força unilateral que sai do ego opressor e mata o ego oprimido; é a negação da condição a que pertencemos.
Quanta pretensão de se travestir de atleta da Justiça. As faculdades de Direito têm excesso de gente e deficiência de espaço físico e de cadeiras (talvez seja esse o motivo do sucesso das graduações à distância). O que se vê são as promessas a juristas totalmente alienadas das propostas fundamentais da prática da Justiça. Parece que os estudantes de Direito vêem a seringa com o conteúdo teórico capturado sem área de aplicação e não usam a genuína indumentária do Justo. Isso me faz lembrar de indivíduos extremamente religiosos que cultuam um deus utópico e desprezam as matérias-humanas (verdadeiros artesanatos do Cosmos) que compõem o Universo.
Certa vez, num lanche na casa de uma amiga – cuja família encaixa-se no estereótipo da “família perfeita” – disseram-me:
- Mandamos a empregada embora porque ela nos roubou um iogurte.
Ri com todos os potes do amarelo. E eles riram com a potência da orquestra que lhes rege a matéria. Imaginei a doméstica arquitetando a grande violência que praticaria no momento da apreensão do pote de iogurte. “Roubo”. Isto me soou como a empregada, munida de facões e agressividade, ameaçando os patrões:
- Hei, se não me derem o iogurte, esfaquearei um por um.
A família da minha amiga é super sociável, bonita, bem sucedida; os pais dela lustram o casamento; semanalmente eles se reúnem para fazer rituais religiosos... E impedem que uma pessoa que lhes serve tenha acesso à geladeira. Fazem-no, não em nome de um jejum hindu; fazem-no porque são a dissonância entre vida e Justiça.
Sabrina fazia tanta acrobacia para comprar toda a gratuidade da vida (água, frutas, leite, verduras, legumes, carnes): trabalhava em uma padaria de acordo com o fôlego dos céus e, ao sair do serviço, era submetida a eloqüentes desconfianças do patrão – verdadeiro detector vivo de possíveis furtos. Sabrina era trabalhadora com status de bandido. E não sei que destino teve essa lembrança que, vez por outra, vinha-me como semáforo de indignação.
Tantas circunstâncias são verdadeiros palanques à linguagem da Justiça. Tantas vezes, nas casas humanas, há quartos disponíveis à Justiça. Mas preferem enchê-los com as quinquilharias da vaidade, da prepotência, do orgulho.

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